Quando dizer tudo não constrói nada
- Fernanda Mendes
- há 6 horas
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Existe uma confusão comum no nosso tempo: a ideia de que “falar tudo o que vem à cabeça” é sinônimo de autenticidade. Como se a ausência de filtro fosse uma virtude espiritual, psicológica ou moral. Mas, na prática, o que chamam de sinceridade muitas vezes é apenas despejo emocional, e despejo não é encontro.
Nas tradições contemplativas e nas visões que compreendem o corpo como campo vivo de experiência, falar tudo o que se sente não é um ato de coragem, é o transbordamento de um sistema que não dá conta de si mesmo. É o corpo dizendo que não conseguiu metabolizar o que viveu, e então joga para o outro aquilo que não sabe sustentar.
No yoga clássico, a presença antes da fala é um compromisso ético. A palavra nasce depois do prana assentado, depois da mente amansada, depois da intenção alinhada. Falar é uma ação energética, e toda ação tem consequência. Por isso, falar sem consciência é agir sem responsabilidade.
Quando despejamos no outro tudo o que sentimos, estamos apenas tentando aliviar um peso que é nosso.
E aliviar momentaneamente. Em muitos momentos, percebi que a pergunta adequada reorganiza a dinâmica de uma conversa. Quando alguém diz “posso te dar uma opinião?” ou “quero te falar algo”, eu não respondo automaticamente. Eu devolvo: “O que você espera que eu faça com o que você vai dizer?” A pausa que se forma costuma revelar mais do que a própria fala. Na maior parte das vezes, a pessoa não sabe responder. Ela hesita, procura sentido, e acaba admitindo: “Não sei.”
Nesse momento, fica evidente que a intenção original não estava clara nem para quem queria falar. Então eu me pergunto: se não há clareza sobre a direção da fala, qual é a função real desse impulso de dizer?
Quase sempre é alívio da própria turbulência interna, não cuidado relacional. Não há intenção de construção, nem entrega, nem direção. A fala vira um impulso, não um ato presente. Quando existe essa pressão interna por dizer tudo, normalmente há dificuldade de autorregulação, pouca consciência corporal, baixa tolerância ao desconforto e uma incapacidade de sustentar a própria experiência. No fundo, há um pedido não dito: “alguém me ajude a lidar com isso.” Mas quando esse pedido vem mascarado de sinceridade, ele fere, afasta e confunde.
Inteligência relacional não é calar, mas também não é despejar. É saber quando, como, para quem e com qual intenção falar. É abrir espaço entre o impulso e a ação, para que a palavra não seja descarga, mas ponte. A autenticidade brota da presença com responsabilidade, não da compulsão de dizer tudo o que se pensa. A ética da palavra, ensinada pelas tradições antigas, nos lembra que cada fala é uma vibração que atravessa o corpo subtil antes de tocar o mundo. Quando nasce de um lugar regulado, ela cura. Quando nasce de um lugar ansioso, ela fere. Quando nasce de um lugar inconsciente, ela confunde.
Talvez o que precisemos não seja falar mais, mas sentir melhor ( com mais qualidade e presença). Não despejar, mas digerir. Não colocar no outro o que é nosso, mas aprender a sustentar o que sentimos até termos clareza sobre o que desejamos construir no espaço comum. Porque, no fim, inteligência relacional não é dizer tudo. É saber qual palavra sustenta o vínculo, e qual palavra o rompe.
Acredito que isso seja um treino contínuo. Quando refinamos internamente nossos conteúdos, estados mentais e respostas corporais, ampliamos a nossa capacidade de estar no mundo sem transbordar sobre o outro. Hoje não falamos apenas de inteligência emocional, mas de inteligência relacional, a estrutura que sustenta quem eu sou quando encontro alguém.
Com amor,
Fernanda.




Como sempre, uma leitura clara, objetiva e que faz refletir. O caminho fica claro. Um treino contínuo avaliando o sentir e principalmente as consequências do fazer sentir. Mas não somente isso. É importante refinar as ideias e saber como colocá-las não só com sinceridade mas, com ternura, cuidado e respeito. Que todos consigamos aprender a calar, enquanto não dominarmos as nossas próprias ideias, emoções e sentimentos. Talvez assim, consigamos construir um mundo melhor, com relações mais saudáveis e sempre em crescimento de afeto, carinho e atenção. 🤗